"Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo.

(in Memorial do Convento)

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Chapéus Há Muitos



Já não se usam chapéus. Não mais se ouvem cumprimentos. 

Os teus vizinhos são distantes estranhos que se cruzam contigo na rotina destes dias apressados. Caminhas pela rua, entras no autocarro, olhas em volta buscando sentido no que ouves e vês. Como meros autómatos, as pessoas agarram-se à segurança do que conhecem; não se denota gentileza nos seus gestos e actos; não se ouve um “Bom dia” ou “Boa tarde”. 
Imagino-me nesta mesma cidade há um século atrás; não me é difícil ver os cavalheiros a baixarem as cartolas, num cumprimento inocente e sincero, quando os passos de uma senhora lhes trouxessem o segredo fugaz do seu perfume. 
Há algum tempo, num almoço de amigos, falava-se de chapéus. Ou da falta deles. A personagem mais velha dessas confidências falava precisamente da época em que o chapéu era uma peça marcante da personalidade de cada um. Parecerá talvez egoísta mas apenas me recordo daquele que ele me sugeriu. Uma boina francesa, boemiamente descaída sob os meus cabelos. 

Anseio por tempos assim. De chapéus como arte, de chapéus como cortesia. Por vezes encontro-os, entrincheirados em pequenas aldeias dentro da cidade, perdidos na simpatia de um sorriso, de um acenar. Receio, contudo, pela sua perenidade: a cidade envelhece por entre o crescente turbilhão de excitantes bares e lojas e a modernidade de incontáveis espaços culturais. Duvido que o stock da Chapelaria Nacional me conseguisse serenar. Chapéus há muitos, gracejava o outro; o que nos falta é a franqueza para olharmos nos olhos das pessoas com quem nos cruzamos.

sábado, 24 de março de 2012

Chocolate À Chuva


A manhã acordou chuvosa. Ainda que tímida, já se sentia o cheiro a terra molhada. E eu lembrei-me disto:

"- Tu parece que vives pelo nariz! Sentes tudo pelo nariz, até parece que tens faro. É esta casa que não cheira a gente, é a tua casa antiga que cheirava a ti e qualquer dia cheira a cão, é a casa da tia Magda que cheira a museu, é o homem das castanhas que cheira a Inverno...
- Então que queres tu. Os cegos conhecem as coisas pelos dedos, pelo tacto. Eu sei se gosto ou não das coisas sobretudo pelo cheiro.
- Estás a ver? É faro, como os cães!
- Talvez seja. Mas garanto-te que não há coisa melhor do que o cheiro do chocolate quente que a gente bebe ao chegar da escola, ou o cheiro do chão encerado, ou o cheiro do cabelo da Rosa quando acaba de tomar banho, ou o cheiro das manhãs de domingo ao acordarmos, ou o cheiro de um caderno novo quando a gente nele começa a escrever."

in "Lote 12 - 2º Frente", de Alice Vieira

Não tenho o "faro" da Mariana (Rosa, Minha Irmã Rosa; Lote 12 - 2º Frente; Chocolate À Chuva) mas aqui ficam alguns dos meus cheiros favoritos:

  • o cheiro do pão fresco, a estalar de tão quente;
  • o cheiro de um livro quando o abro pela primeira vez;
  • o cheiro a maresia;
  • o cheiro de um caderno por estrear;
  • o cheiro do meu bolo de chocolate;
  • o cheiro a relva cortada;
  • o cheiro da pele bronzeada;
  • e o cheiro a terra molhada;

E já agora, sabem como surge o cheiro a terra molhada? A Mãe Natureza tem uma  "pequena" ajuda: das Streptomyces para o ar...(leiam aqui)

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

The Girl With The Dragon Tatto



As árvores despidas flanqueiam o percurso do automóvel. Na imensidão que o seu olhar alcança, ele só vê o silêncio do branco gélido. Ao fundo, a alva mansão ergue-se na sua própria imponência, indiferente ao Inverno agreste. Altivez manchada apenas pela dor de um mistério que os olhos do velho homem reflectem há quatro décadas. Ele devolve-lhe no olhar o compromisso de uma investigação. O frio sela o aperto de mão entre os dois homens, assombrados pela beleza das flores secas que se confundem já com a memória da jovem mulher.

O dragão conquista-lhe os traumas e as fraquezas. Corpo franzino num olhar forte, ela quer ser apenas mais um vulto na multidão. O preto agressivo das roupas camufla a dualidade que o seu ser encerra.

Cruzam-se sem aviso, na turbulência do ódio e do horror externos. Unidos na busca pela verdade e justiça. De súbito, são engolidos pela sua imensidão. A ilha é agora uma inquieta ameaça. Estreitando-se, a estrada é agora opressora e perigosa.




domingo, 1 de janeiro de 2012


Os ramos semi-nus pendem em direcção ao Douro, num lamento de folhas caídas. Um manto em tons de Outuno que já quase ninguém pisa. O riso das crianças  não anima mais os baloiços. Nem sobressalta os mais velhos em busca de descanso e cura termais. Os  cálidos repuxos estão agora imóveis. Num edifício fantasma, a tinta gasta assombra as pitorescas inscrições de tempos antigos.

Hoje, contudo, os nobres portões de ferro foram transpostos, num passeio a dois. As nossas gargalhadas ressoaram pelas férteis encostas. Num repente, um inesperado visitante de quatro patas juntou-se a nós, desejoso de brincadeira. Fizemos-lhe a vontade e ele correu em busca da esfarrapada bola, levantando terra e folhas pelo ar, num salutar desassossego. Nós despedimo-nos, preenchendo o olhar, a memória e o coração com a quietude e beleza deste recanto à beira-rio esquecido.