"Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo.

(in Memorial do Convento)

sábado, 28 de dezembro de 2013

Adeus



Permiti que regressasses. Inebriada de boa vontade e esperança, aproximei-me, chamei-te a mim. Acto tão dolorosamente em vão. Sob essa máscara de ingenuidade que tanto cultivas e gostas, és o cobarde e o mentiroso que um dia suspeitei ver, por entre meias palavras e efémeros actos. Não posso esquecer. Não consigo perdoar-te. Por isso, não finjas uma atitude honrosa. O meu coração está-te fechado. Sem lágrimas, sem arrependimentos. Não mereces nenhum.


domingo, 1 de dezembro de 2013



Repouso no banco de jardim, encostada aos doces versos de António Aleixo. Vejo-o chegar, chapéu de feltro e um olhar de carinho e antecipação. Pousa a bicicleta contra a parede de branco caiada e, no que supus já ser um ritual, começa a devolver os pertences à sua morada de setenta anos. Primeiro a cana de pesca, totem de maresia e Guadiana, cúmplice de histórias várias e companheira silenciosa de tantas outras reflexões. Segue-se a caixa de utensílios, um saco de compras, uma outra pequena caixa. Por último, resta-lhe apenas o velho velocípede. É então que reparo no cesto. Sozinha naquele aparente mundo masculino, uma camélia branca sorri. Eu retribuo, pensativa. Que destino encontrará? As mãos alvas e calejadas daquela que lhe encanta os dias eternos, desde a noite em que o tempo parou, nos rodopios do bailarico em que a tomou nos braços pela primeira vez? Ou a nostalgia de um passado que lhe fugiu, encerrado nas memórias do brilho perene dos seus olhos verdes, da melodia de alento que era a sua voz? Estremeço. O homem entra e a camélia desaparece na sombra da pesada porta de madeira. Com ela, as minhas divagações. Nunca saberei o seu fado.


quinta-feira, 11 de julho de 2013

O fim do sonho



Ainda te sinto em mim. Distante, o calor do teu corpo sobre o meu é uma vivida lembrança dos dias fantasmas que já não partilhamos. Suspiro; o tempo não volta atrás. Porque haveria? Já nem a espontaneidade de um olhar ou o carinho de um sorriso suportamos. Gostava de te ter beijado ao primeiro luar. Na minha mente, tudo teria sido diferente. Gostava de ter calado as palavras que sempre e inevitavelmente me afastam do presente. Tudo teria sido diferente. Teria? Porque não podemos simplesmente voltar à noite de Verão em que por momentos fomos um, a tua mão a agarrar o meu cabelo, os teus lábios a descobrirem a topografia dos meus? Sem amarras, sem questões, súbditos apenas da paixão, apenas tu e eu. Subitamente, tudo se esfumou. Odeio a incerteza que agora guia os meus dias. Odeio a forma como me fazes sentir. Odeio a indefinição que nos tornámos. Porque insisto? Já não existe nenhum “nós”. Cada olhar que evitas, cada silêncio que me atiras à cara, são facadas no coração que me fazem aperceber que o “nós” nunca existiu. E ainda assim não te odeio. E, ainda assim, como gostava de te ter beijado ao primeiro luar…


segunda-feira, 17 de junho de 2013

A Midsummer Night's Dream


For a minute, we were as one. The music stopped, the voices were but a silent echo in the dark, the people fled, like blotting masses that didn´t matter. Not there, not anymore. A fleeting moment, some might say, but in your arms I felt complete. We kissed with the urgency of the discovery and the passion of lovers with a lifetime waiting for them.

I woke up. Did I? We´re apart but your presence still haunts my days. The nights are muffled despairs, longing for answers to questions I didn´t even ask.

For a moment we had the world. For a moment we were the world. Not here, not now. We can´t go back. It shattered when we looked away in doubt. We can´t repeat the past. At last, do we have the courage to make the future a certainty and not a dream?


quinta-feira, 2 de maio de 2013

Desencanto



Sacudo-te do calor do meu corpo sem arrependimento. A mágoa afasta-se, pequeno ponto distante pelo retrovisor, dissuasora da tentação de regressar. Um dia fomos felizes. Juntos, não sei se o voltaremos a ser. Beijaste-me na noite fugaz, ao coberto da timidez e da ilusão, num sonho não partilhado. Esbarrei na tua imaturidade, qual parede que inconscientemente ergueste. Minto. Como não te podias aperceber das consequências dos teus actos? Como esperavas que eu te pudesse acolher na intimidade do meu abraço, passiva e cega às falsas verdades e doces mentiras com que me espezinhaste? Não sou e não serei o teu porto seguro na solidão alcoolizada dos dias que se arrastam. Perdeste-me quando o teu olhar me quis seduzir mas não me abarcou; perdeste-me na noite em que preferiste o acaso do jogo à honestidade da palavra.


sábado, 27 de abril de 2013

Memórias de infância



O castanheiro era o nosso forte, o nosso lar. Nos crescendos da urbanização, os seus longos e sóbrios ramos estendiam-se num recanto verde que abrigava as nossas brincadeiras. 
Dizem-me que eu era uma criança travessa, que, para chamar os outros meninos, os arranhava e lhes puxava os cabelos. Custa-me imaginar-me assim; tenho de mim a imagem de uma criança roliça e dócil, com uma saudável dose de traquinice, é certo, mas calma e gentil. Guardo esses traços como uma peculiaridade do meu ser, longínqua e preciosa: na infância não existem barreiras, apenas aquelas que nos moldam naquilo que um dia seremos. Aprendi com os meus erros; não mais recorri a arranhadelas e puxões de cabelo. 
O castanheiro chamava meninos e meninas de todos os cantos. Era afinal um plácido oásis que nos resguardava das agitações do mundo exterior. Pelo relvado circundante, encontrávamos sempre reluzentes ouriços, nossos tesouros e conquistas em tranquilas tardes outonais. 
Mais tarde, não eram apenas ouriços nem castanhas que se abatiam pelo relvado. Todos nós sabíamos o que isso significava. O castanheiro nu parecia clamar, de ramos dignamente estendidos, pela sua iminente chegada. E, no que nos parecia um instante, o frio apropriava-se do nosso abrigo. Eram as rajadas de vento, o vapor do nosso expirar, os casacos pesados, o toque de mãos gélidas. 
O Inverno desalojava-nos temporariamente. Na sua sóbria imponência, o castanheiro parecia sorrir-nos, acalmando o nosso desgosto, partilhando um segredo que só posteriormente entenderíamos. Até breve.