"Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo.

(in Memorial do Convento)

sábado, 27 de abril de 2013

Memórias de infância



O castanheiro era o nosso forte, o nosso lar. Nos crescendos da urbanização, os seus longos e sóbrios ramos estendiam-se num recanto verde que abrigava as nossas brincadeiras. 
Dizem-me que eu era uma criança travessa, que, para chamar os outros meninos, os arranhava e lhes puxava os cabelos. Custa-me imaginar-me assim; tenho de mim a imagem de uma criança roliça e dócil, com uma saudável dose de traquinice, é certo, mas calma e gentil. Guardo esses traços como uma peculiaridade do meu ser, longínqua e preciosa: na infância não existem barreiras, apenas aquelas que nos moldam naquilo que um dia seremos. Aprendi com os meus erros; não mais recorri a arranhadelas e puxões de cabelo. 
O castanheiro chamava meninos e meninas de todos os cantos. Era afinal um plácido oásis que nos resguardava das agitações do mundo exterior. Pelo relvado circundante, encontrávamos sempre reluzentes ouriços, nossos tesouros e conquistas em tranquilas tardes outonais. 
Mais tarde, não eram apenas ouriços nem castanhas que se abatiam pelo relvado. Todos nós sabíamos o que isso significava. O castanheiro nu parecia clamar, de ramos dignamente estendidos, pela sua iminente chegada. E, no que nos parecia um instante, o frio apropriava-se do nosso abrigo. Eram as rajadas de vento, o vapor do nosso expirar, os casacos pesados, o toque de mãos gélidas. 
O Inverno desalojava-nos temporariamente. Na sua sóbria imponência, o castanheiro parecia sorrir-nos, acalmando o nosso desgosto, partilhando um segredo que só posteriormente entenderíamos. Até breve.